Isaías 53 é o quinquagésimo terceiro capítulo do Livro de Isaías na Bíblia Hebraica ou no Antigo Testamento da Bíblia Cristã. Este livro contém profecias atribuídas ao profeta Isaías e é um dos Nevi'im, livros proféticos da Tanakh. O capítulo data do tempo do exílio dos israelitas na Babilônia.[1]
Versões do texto
O texto original foi escrito em hebraico bíblico. O capítulo é dividido em 12 versículos, embora a perícope "O servo sofredor" comece no capítulo anterior, Isaías 52:13, abrangendo assim um total de 15 versículos.[2] O texto sobrevive em várias tradições manuscritas autônomas e paralelas em hebraico, grego, latim e outras línguas.[3]
Dentro dos Manuscritos do Mar Morto da Comunidade de Qumran foi encontrado o que é denominado como "O Grande Livro de Isaias", uma versão completa do livro, com datação entre 150-125 a.C.[5]. Os Manuscritos também contém outras partes do livro, mas em fragmentos[6]. Estes estes os primeiros testemunhos existentes do texto hebraico de Isaias 53:[4]
1QIsaa: livro completo, contendo todos os 66 capítulos, com lacunas ocasionais e algumas palavras faltantes;
Jerônimo traduziu sua edição da Vulgata a partir de manuscritos hebraicos disponíveis para ele no século IV d.C. A retroversão do latim para o hebraico pode recuperar o que os manuscritos hebraicos diziam à época.
Os versículos de Isaías 52:13-53:12 incluem quatro dos "Cânticos do Servo", descrevendo um "servo" de Deus que é maltratado, mas eventualmente vindicado.[10]
Os temas do texto incluem uma ampla variedade de assuntos éticos, incluindo culpa, inocência, violência, injustiça, adesão à vontade divina, arrependimento e retidão. Cristãos, tradicionalmente, tem interpretado os cânticos como referências à Jesus Cristo.[10]
José de Arimateia
Muitos cristãos interpretam o papel de José de Arimatéria como cumprimento da profecia de Isaías de que o túmulo do "Servo Sofredor" estaria com um homem rico, assumindo que Isaías 53:9 se refere ao Messias:[11]
"Deram-lhe a sepultura com os ímpios, e com o rico esteve na sua morte; ainda que ele não tinha cometido violência, nem havia dolo na sua boca" (Isaías 53:9).
Na obra Exposition of the Bible (em português: Comentário da Bíblia), John Gill aponta que: o versículo fala sobre a sepultura de Cristo, que embora ele tenha morrido entre criminosos, foi enterrado no túmulo de um homem rico, José de Arimateia; os judeus pretendiam que ele fosse sepultado como um criminoso, mas Deus ordenou que ele fosse enterrado de maneira honrosa.[12]
Interpretação judaica
Literatura judaica
Talmude
O Talmude possui algumas referências ao livro de Isaias, capítulo 53:
No primeiro livro do Talmude, Berachot, Isaías 53 é interpretado como uma referência ao povo de Israel e àqueles que estudam a Torá. O texto sugere que o sofrimento pode ser uma forma de purificação e recompensa para os justos. O versículo de Isaías 53:10 é mencionado explicar que se Deus está satisfeito com alguém, ele pode permitir que essa pessoa sofra, como forma de testar sua devoção. O trecho também destaca que aqueles que aceitam o sofrimento com resignação serão recompensados, vendo sua posteridade e prolongando seus dias, enquanto sua sabedoria permanecerá. O rabino Shimon bar Yochai sugere que Deus deu três presentes preciosos a Israel, todos concedidos através do sofrimento: a Torá, a Terra de Israel e o Mundo Vindouro.[13]
No Sotá 14a, do Talmude Babilônico, Isaías 53:12 é associado a Moisés; no Talmude de Jerusalém, em Shekalim 5:1, esse versículo é aplicado ao Rabino Aquiba. Isso ocorre porque tanto Moisés quanto Aquiba foram considerados transgressores, mas ambos se levantaram em defesa da nação de Israel.[13]
No livro de Sinédrio 98b, do Talmude Babilônico, especula-se de forma irônica sobre o nome não revelado do Messias judeu que está por vir, sugerindo que poderia ser qualquer pessoa. As possibilidades incluem um "leproso da escola" (uma alusão a discípulos rabínicos expulsos de um seminário).[13]
Midrash
O método midráshico de exegese bíblica busca obter sentido além do literal, examinando o texto de diversos ângulos e, assim, obtendo interpretações que não são à primeira vista óbvias.[14]
O intérprete Ruth Rabá interpreta o Livro de Rute detalhadamente, sugerindo que o Messias descenderá de Rute através do Rei Davi.[15] Ele relaciona eventos na narrativa de Rute como prenúncios do futuro de seus descendentes. Rute é elogiada por sua modéstia e bondade para com Naomi, associando suas ações ao Messias e destacando a importância da bondade.
Números Rabá 13:2 aplica Isaías 53:12 a Israel no exílio, sugerindo que o redator tinha acesso a um Midrash antigo sobre Números, cuja existência atual desconhecemos. Este Midrash provavelmente pertencia ao grupo de Midrashim do estilo Tanhuma.[16]
Eliyahu de Rabá, que os estudiosos concordam foi escrito no final do século X, tem 3 citações referenciadas Isaías 53, no Midrash conhecido como Tana Devei Eliyahu, aplicando-se-lhes os justos de Israel (capítulos 6, 13, 27).
Zohar
A Zohar é a base de trabalho da literatura mística da cabala.[17] As referências a Isaías 53 são em grande variedade: ao todo, são feitas oito referências, nas quais os versículos do livro são interpretados como relativos à Moisés; outras 7 referências são ligadas aos justos de Israel e uma é apontada diretamente para a nação da Israel. Ainda, Isaias 52:13-14[18] é relacionado com o anjo Metatron.[19]
Interpretações cristãs
Novo testamento
O Novo Testamento retrata uma interpretação consistente e singular de Isaías 53, identificando o servo sofredor como Jesus de Nazaré: sua experiência de crucificação e ressurreição é retratada como o cumprimento do texto do Antigo Testamento.
Evangelhos
As primeiras palavras de Jesus registradas em Marcos, que muitos acreditam ser o evangelho mais antigo (66–74 d.C)[20], são as seguintes: «O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no Evangelho.» (Marcos 1:15).
Os estudiosos bíblicos geralmente apontam para Isaías 52:7 como o pano de fundo da proclamação de Jesus. A passagem de Isaías fala de um mensageiro que traria "boas novas" do reino de Deus e o anúncio da salvação. Jesus se identifica tanto como o mensageiro de Isaías 52:7 quanto como o servo sofredor de Isaías 53, uma ligação que não era exclusiva do judaísmo. Craig Evans cita várias fontes que relacionam as "boas novas" de Isaías 52:7 com o "relato" de Isaías 53:1.[21]
Assim, há boas razões para conjecturar que sempre que os autores do Novo Testamento falam do "evangelho" ou das "boas novas", trata-se de uma referência a Isaías 53, conforme eles o viram ser cumprido na vida, morte e ressurreição de Jesus. Os autores do Novo Testamento se referem às "boas novas" (em grego clássico: εὐαγγέλιον; romaniz.: euangelion) 76 vezes.
Jesus cita e aplica diretamente Isaías 53:12 a si mesmo em Lucas 22:37. Marcos 10:45 não é uma citação direta de Isaías 53, mas faz alusão a ele com o tema de servir a "muitos" por meio da morte. Essas duas passagens fornecem exemplos da autocompreensão de Jesus como o servo de Isaías 53.
Atos dos Apóstolos
Outras passagens em Atos dos Apóstolos encaixam Jesus na leitura do capítulo de Isaias. Em Atos 8:26-40, um eunuco etíope lê o capítulo na Septuaginta e pergunta a Filipe: "Por favor, peço-te que me esclareças sobre quem o profeta está falando? De si mesmo ou fala de algum outro?". No versículo seguinte, Filipe alega que a profecia está relacionada a Jesus. [22] Isso implica que a interpretação de que Isaias 52 e 53 se referem a Jesus eram correntes na época em que Atos foi escrito.[23]
Epístolas
Paulo faz alusão aos temas de Isaías 53 em 2 Coríntios 5:19-21, onde ele identifica Jesus como aquele que não tem pecado e que entrega a justiça aos pecadores. Ele diz que "em [Jesus] podemos nos tornar a justiça de Deus" (2 Coríntios 5:21). Isso é muito semelhante a Isaías 53:11, onde se diz que o servo justo "torna justos muitos" suporta a punição de muitos. Romanos 5:19 segue a mesma lógica sobre "os muitos" e a justiça por meio de Cristo.
Em Romanos 10:15, Paulo identifica a mensagem de salvação em Cristo como as "boas novas" de Isaías 52:7. Logo em seguida, ele apela para Isaías 53:1 e equipara as "boas novas" com a "mensagem" que Israel havia rejeitado (Romanos 10:16). Com essa exegese, Paulo sustenta que a rejeição judaica de Cristo foi profetizada por Isaías, embora a rejeição não tenha sido total, com Israel passando a acreditar em Cristo em seu retorno apocalíptico (Romanos 11). João 12:38 cita Isaías 53:1 com o mesmo propósito de explicar que a rejeição de Cristo pelos judeus havia sido predita.
A epístola de 1 Pedro dá um lugar de destaque ao texto de Isaías 53. Em 1 Pedro 2:23-25, há pelo menos quatro citações e quatro alusões a Isaías 53.Carson escreve: "É possível que o próprio Pedro tenha sido o primeiro dos apóstolos a desenvolver a cristologia do Servo Sofredor."[49] Pedro afirma que os maus-tratos e a morte de Jesus foram preditos em Isaías 53, e ele pede que os seguidores de Jesus repitam seu exemplo ético por meio da não resistência. [24]
Patrística
Isaías 53 foi amplamente citado pelos pais da igreja, que encontravam paralelos com Jesus. O exemplo mais antigo fora do Novo Testamento pode ser encontrado na Primeira Epístola de Clemente, escrita por entre de 95-97 d.C.[25] Outro exemplo antigo está na Epístola de Barnabé, escrita entre 70-135 d.C.[26]Ireneu de Lyon cita a passagem de Isaias 53:8 na obra Contra Heresias. [27] e Tertuliano dedica um capítulo da obra Contra os judeus para analisar o tema das profecias do Antigo Testamento.[28]
Relações judaico-cristãs
Antes de 1000 d.C
O exemplo mais antigo conhecido de um judeu e um cristão debatendo o significado de Isaías 53 é citado por Orígenes, pai da igreja cristã, na obra Contra Celsum, escrita em 248 d.C:
Lembro-me de que, em certa ocasião, em uma discussão com alguns judeus, considerados homens sábios, citei essas profecias; ao que meu oponente judeu respondeu que essas predições se referiam a todo o povo, considerado como um indivíduo, e como estando em um estado de dispersão e sofrimento, a fim de que muitos prosélitos pudessem ser conquistados, por causa da dispersão dos judeus entre numerosas nações pagãs.[29]
Entre 1000-1500 d.C
Em 1263 d.C, na Disputa de Barcelona, Nachmánides expressou o ponto de vista judaico sobre Isaías 53 e outros assuntos relacionados à crença cristã sobre o papel de Jesus nas Escrituras Hebraicas, buscando refutar o cristiansimo. A disputa foi considerada vencida por Nachmánides pelo rei Jaime I de Aragão e, como resultado, a Ordem Dominicana obrigou-o a fugir da Espanha pelo resto de sua vida. Passagens do Talmud também foram censuradas.[30] Em uma série de outras discussões, debates sobre esta passagem resultou em conversões forçadas, deportações, e a queima de Judeus textos religiosos.[31]
Modernidade
O uso de Isaías 53 em debates entre judeus e cristãos ainda ocorre com frequência no contexto do trabalho missionário cristão entre judeus, e o tópico é uma fonte de discussão frequente, muitas vezes repetitiva e acalorada. Alguns cristãos devotos veem o uso da interpretação cristã de Isaías 53 na conversão de judeus como um ato especial de amor cristão e um cumprimento do ensinamento de Jesus Cristo sobre a Grande Comissão. A visão comum inalterada entre muitos judeus hoje, incluindo os caraítas, é que se todo o livro de Isaías for lido do início ao fim, em hebraico, fica claro que Isaías 53 não está falando de um indivíduo, mas da nação de Israel como um todo.[32][33]
Alguns acreditam que o indivíduo seja Ezequias. Durante seu reinado, o exército da Assíria invadiu Judá e sitiou Jerusalém; mas os israelitas saíram vitoriosos. Este evento fez com que Ezequias fosse exaltado aos olhos de muitas nações; ao mesmo tempo, o rei adoeceu gravemente e esteve à beira da morte, de modo que a vida dele representaria o sofrimento e exaltação descritos em Isaias 53.[34]
A frase "como ovelhas para o matadouro", usada para descrever a suposta passividade judaica durante o Holocausto, deriva de Isaías 53:7.[35]
Visão contramissionária judaica
Organizações internacionais judaicas contramissionárias, como a Outreach Judaism ou a Jews for Judaism, respondem diretamente às questões levantadas pelos missionários cristãos com relação a Isaías 53 e exploram o judaísmo em contradição com o cristianismo [36] Em relação à interpretação de Isaias 53, acreditam que o texto descreve o exílio e a redenção do povo judeu, com profecias escritas no singular porque os judeus são considerados como uma unidade.[37]
Visão moderna
De acordo com os estudos acadêmicos modernos (incluindo acadêmicos cristãos), o servo sofredor descrito no capítulo 53 de Isaías é, na verdade, o povo judeu em seu contexto original.[38][39][40][41][42]
↑ abcDer babylonische Talmud. Bd.12 (em alemão). 12 Limitierte Sonderausgabe reproduziert nach dem Nachdruck 1996 ed. Frankfurt am Main: Jüdischer Verlag im Suhrkamp-Verlag. 1996
↑Michael Berenbaum; Fred Skolnik (eds.). Zohar . Gale Virtual Reference Library. Gale
↑«Ele verá o fruto do trabalho de sua alma, e ficará satisfeito; pelo seu conhecimento o meu servo justo justificará a muitos, e as iniqüidades deles ele as tomará sobre si.
Por isso lhe darei a sua parte com os grandes, e com os fortes ele partilhará os despojos; porque derramou a sua alma até a morte, e foi contado com os transgressores. Contudo levou sobre si os pecados de muitos, e intercedeu pelos transgressores.» (Isaias 53:11–12)
↑Shulman, Moshe (2004). «The Zohar on Isaiah 53». Judaism's Answer (em inglês). Consultado em 15 de maio de 2024
↑Evans, Craig A. (2012). "Dead Sea Scrolls". In Boda, Mark J.; McConville, Gordon J. (eds.). Dictionary of the Old Testament: Prophets. Downers Grove, IL: IVP Academic. p. 147.
↑Marshall, I. Howard (2007). "Acts". In Beale, G.K.; Carson, D.A. (eds.). Commentary on the New Testament Use of the Old Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic. p. 574.
↑Carson, D.A. (2007). "1 Peter". In Beale, G.K.; Carson, D.A. (eds.). Commentary on the New Testament Use of the Old Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic. p. 1033.
↑W.C. van Unnik, "Studies on the so-called First Epistle of Clement. The literary genre," in Cilliers Breytenbach and Laurence L. Welborn, Encounters with Hellenism: Studies on the First Letter of Clement, Leiden & Boston: Brill, 2004, p. 118. ISBN 9004125264.
↑Schloss, Chaim (2002). 2000 years of Jewish history: from the destruction of the second Bais Hamikdash until the twentieth century. Jerusalem ; New York: Feldheim Publishers
↑Henry, Patrick Gerard (2014). Jewish resistance against the Nazis. Washington, D.C: The Catholic University of America Press
↑«The Suffering Servant». Glad Tidings Magazine (em inglês). 24 de julho de 2021. Consultado em 16 de maio de 2024
↑Middleton-Kaplan, Richard (2014). "The Myth of Jewish Passivity". In Henry, Patrick (ed.). Jewish Resistance Against the Nazis. Vaughn Seward edition. pp. 3–4.