Alice Guy-Blaché (Saint-Mandé, 1 de julho de 1873 — Wayne, 24 de março de 1968) foi uma pioneira no cinema francês. É comumente reverenciada como a primeira cineasta e roteirista de filmes ficcionais, vista como uma visionária no uso do cronofone de Gaumont para a sincronização de som, colorização, elenco interracial e uso de efeitos especiais.[1] Alice dirigiu mais de mil filmes durante vinte anos de carreira, administrou seu próprio estúdio e serviu de inspiração para vários artistas, como Alfred Hitchcock e Barbra Streisand.[2]
Vida pessoal
Alice nasceu em Saint-Mandé, em 1873. Seu pai, Emile Guy, era dono de uma rede de livrarias e de uma editora no Chile e sua mãe era Marie Clotilde Franceline Aubert. O casal mudou-se para Santiago, no Chile, logo após o casamento. Em uma viagem de vários meses a Saint-Mandé, nasceu Alice.[3] Seu pai retornou ao Chile logo após o nascimento de Alice, com sua mãe seguindo-o pouco depois. Alice ficou com os avós em Carouge, na Suíça, até os quatro anos de idade. Ela então foi enviada ao Chile para morar com os pais, onde aprendeu a falar espanhol com a governanta da casa, Conchita.[3][4]
Aos 6 anos, Alice foi mandada para a França para estudar no Colégio do Sagrado Coração, na fronteira com a Suíça, junto de seus irmãos. Na época, o sentimento comum entre os franceses era que as escolas jesuítas eram as únicas que forneciam educação de qualidade. Mas seu pai decretou falência, obrigando que Alice e os irmãos tivessem que ir para uma escola mais barata. Pouco depois disso, seu irmão mais velho morreu, aos dezessete anos. Seu pai viria a morrer em 1893, desgastado pelas condições financeiras e de saúde.[3][4]
Após a morte de seu pai, Alice treinou como estenógrafa e datilógrafa, campos novos na época, para poder sustentar à mãe e a si mesma. Ela conseguiu seu primeiro emprego em uma fábrica de verniz. Um ano depois, em 1894, começou a trabalhar com Léon Gaumont na Comptoir général de la photographie.[4]
O trabalho com Gaumont
Em 1894, Alice foi contratada por Gaumont para trabalhar na empresa de fotografia como secretária.[3] A empresa logo ruiria, mas Gaumont comprou o inventário e começou sua própria empresa, que logo se tornaria uma potência pioneira na indústria de cinema da França. Alice decidiu continuar com Gaumont em sua empresa nova, a "Gaumont Film Company", decisão que a levaria a se tornar pioneira.[5]
Logo, Alice veria como era o trabalho com filmagens e começou a aprender o negócio com clientes e funcionários. Assim, ela também conheceria Georges Demenÿ e os irmãos Auguste e Louis Lumière.[4] Em 22 de março de 1895, Alice e Gaumont foram à exibição surpresa dos Lumière, onde eles demonstraram o uso de um projetor de filme, um desafio que tanto Gaumont, como Thomas Edison e os Lumière vinham tentando solucionar. Eles exibiram um dos primeiros filmes já feitos, La Sortie de l'usine Lumière à Lyon, que consistia em uma cena mostrando trabalhadores no estúdio dos irmãos, em Lion.[4][5]
Alice logo percebeu o potencial dos filmes. Ela acreditava que filmagens não deveriam servir apenas para propósitos científicos ou com o objetivo de vender câmeras, mas que era possível incorporar elementos ficcionais em filmes.[2] Ela perguntou então a Gaumont se teria a permissão de fazer seu próprio filme em seu tempo livre e ele permitiu, que não se sabe ao certo quando foi feito.[4] Alguns fatores foram importantes para a permissão de Gaumont: ele sabia que Alice era uma ótima profissional, o potencial comercial imprevisto do filme e a fraca compreensão de Gaumont sobre o verdadeiro potencial da narrativa visual levaram a esse "sim" e à prolífica carreira de Alice.[2][3]
O primeiro filme de Alice, a primeira produção no mundo com uma narrativa cinematográfica, chama-se La Fée aux choux (A Fada do Repolho) e foi feito provavelmente em 1896, baseado em um antigo conto francês. A produção provou a Gaumont a visão pioneira e criatividade de Alice. De 1896 a 1906, ela foi chefe de produção do estúdio de Gaumont e provavelmente a única mulher diretora de cinema neste período.[6] Seus primeiros filmes tinham temas e características semelhantes aos colegas Lumière e Méliès. Fazia filmes de viagens, de shows de dança, às vezes combinando os dois temas, tendo filmado na Espanha os filmes Le Bolero (1905) e Tango (1905).[3][4]
Em 1906, ela filmou The Life of Christ, uma grande produção para a época, com trezentos figurantes. Foi pioneira no uso de gravações de áudio junto das imagens na tela, utilizando o cronofone de Gaumont. Também aplicou os primeiros efeitos especiais, usando dupla exposição da película, técnicas de máscara e até rodando o filme ao contrário.[4][5]
Solax Company
Em 1907, Alice casou-se com Herbert Blaché, logo encarregado de produção nas operações de Gaumont nos Estados Unidos. Após trabalhar com o marido nos Estados Unidos, os dois resolveram criar sua própria empresa, em 1910, com George A. Magie, surgindo assim a Solax Company, o maior estúdio de cinema antes de Hollywood,[4] sendo Alice a primeira mulher a dirigir um estúdio, ou uma das primeiras.[5]
Estabelecida no Queens, em Nova York, o casal se dedicou a trabalhar em diversas produções. Herbert era diretor de produção e fotografia, enquanto Alice era diretora de muitos dos lançamentos da empresa. Em dois anos, eles prosperaram tanto que conseguiram investir mais de cem mil dólares em um novo e mais moderno estúdio, em Fort Lee, Nova Jersey.[7][8][9]
Vários anos depois, Alice e Herbert se divorciaram e com o declínio na indústria cinematográfica na costa leste, que migrava para a costa oeste, estabelecendo as bases da indústria de Hollywood, a parceria entre os dois acabou.[3][4]
Pós-Solax
Catherine Calvert em House of Cards (1917), escrito e dirigido por Alice Guy-Blaché
Seu casamento com Herbert pôs um fim à sua parceria com Gaumont e seu trabalho em seu estúdio. Alice deu à luz sua filha Simone, em Nova York, em 1908. Dois anos depois, nasceria seu segundo filho, o que não a parou de trabalhar em pelo menos três filmes por semana. Para focar apenas em roteirizar e dirigir, ela passou a presidência da Solax para Herbert.[3][4][10]
Muito se especula se o fim do estúdio se deveu à competição de Herbert com sua esposa e na necessidade de promover a si mesmo às custas do trabalho dela.[4] Alguns estudiosos de cinema argumentam que foram os maus investimentos de Herbert que levaram às dificuldades financeiras da família, obrigando-os a buscar empréstimos junto a bancos para poderem se manter. Um dos requisitos para o investimento era o de tornar Catherine Calvert em uma estrela, mas tão logo ela chegou ao estúdio da Solax, tornou-se amante de Herbert.[10]
O casal tentou manter uma parceria por algum tempo, mas o relacionamento durou pouco. Herbert deixou a esposa e os filhos para tentar carreira em Hollywood com outra atriz.[10] Alice dirigiu seu último filme em 1920, quase morrendo durante a produção devido à gripe. Em 1922, Alice e Herbert estavam oficialmente divorciados, obrigando-a a leiloar seu estúdio devido à falência. Após perder seu estúdio, ela retornou à França e nunca mais dirigiu ou produziu outro filme.[4][10]
Ela ainda tentaria mais uma vez retomar o trabalho nos Estados Unidos, em 1927, mas não teve sucesso.[10]
Morte
Alice Guy-Blaché nunca se casou novamente e em 1964 retornou ao Estados Unidos para morar com uma de suas filhas. Em 24 de março de 1968, Alice morreu, aos noventa e quatro anos, enquanto morava em um asilo. Ela foi enterrada no Cemitério Maryrest, em Mahwah, Nova Jersey.[11]
Memória
No final dos anos 1940, Alice escreveu sua biografia e em 1976 a publicou em francês.[4] Foi traduzida para o inglês em 1986 com a ajuda de sua filha, Simone, e de sua cunhada, Roberta Blaché, com o auxílio do escritor de cinema Anthony Slide. Ela também se preocupava com a inexplicável ausência de seu nome nos registros históricos da indústria do cinema. Esteve em contato constante com vários colegas e historiadores de cinema para corrigir fatos da indústria e de sua carreira. Ela criou listas com seus filmes na esperança de ser devidamente creditada por eles.[10]
Legado
Alice Guy-Blaché foi a primeira mulher a fazer filmes, sendo a primeira, ou uma das primeiras, a criar filmes com narrativa.[4] Em vinte e quatro anos de carreira dirigindo, roteirizando e produzindo filmes, ela teve mais sucesso do que muitos diretores atuais. De 1896 a 1920, ela dirigiu mais de mil filmes, mas apenas uns trezentos e cinquenta sobreviveram aos dias atuais, sendo vinte e dois deles longa-metragens.[10][12]
Alice também foi uma das primeiras mulheres, junto de Lois Weber, a ter seu próprio estúdio. Alguns de seus filmes vem sendo recuperados depois do sucesso do documentário Be Natural: The Untold Story of Alice Guy-Blaché.[13] Em 2010, o serviço de arquivo da Academia de Artes Dramáticas restaurou um curta, "The Girl in the Arm-Chair".[14]
O único marco histórico do trabalho de Alice nos Estados Unidos era o estúdio da Solax Company, em Nova Jersey. A comissão de cinema de Fort Lee, em 2008 criou então o "Alice Award", entregue anualmente, em memória de Alice Guy-Blaché.[15] Em 2012, no centenário de fundação da Solax Company, em Fort Lee, a comissão de cinema arrecadou fundos para trocar a lápide de seu túmulo no Cemitério Maryrest.[2][3][16] A nova lápide inclui o logo dos estúdios Solax e descreve seu pioneirismo no cinema. O "Golden Door Film Festival" também tem um prêmio em sua homenagem, o "Women in Film-Alice Guy Blache Award".[17]
Em 2011, FLIGHT,[18] produção da Broadway retratou uma visão ficcional da vida de Alice Guy-Blaché. No mesmo ano, a comissão de cinema de Fort Lee entrou com uma petição na Directors Guild of America para aceitar Alice como membro póstumo.[19]
↑ abcdefghiBlaché, Roberta e Simone (1996). The Memoirs of Alice Guy Blaché (The Scarecrow Filmmakers Series). França: Scarecrow Press. p. 212. ISBNB00DZMYCBI Verifique |isbn= (ajuda)