Reunião no Automóvel Clube
A reunião no Automóvel Clube foi uma solenidade de sargentos da Polícia Militar e Forças Armadas do Brasil, em 30 de março de 1964, no Rio de Janeiro, na qual discursou o Presidente da República João Goulart. Ocorrendo em meio à repercussão da Revolta dos Marinheiros, foi um dos fatores imediatos do golpe de Estado iniciado no dia seguinte. Dias antes, os movimentos de praças (baixas patentes militares), cujo apoio o presidente buscava obter, haviam estado no centro de um motim na Marinha, e a resposta de Goulart fora considerada insuficiente para a oposição e os militares. Porém, o presidente não recuou e, embora advertido que seu comparecimento seria provocação política, reuniu-se com os sargentos e os mesmos marinheiros dos dias anteriores. Em seu discurso, considerado por grande parte dos autores como mais radical, insistiu que as reformas de base seriam conseguidas, apontou o golpe de Estado iminente e defendeu-se das críticas de que fosse inimigo da disciplina e hierarquia militares, transferindo essa acusação para seus inimigos. A repercussão foi negativa entre os oficiais, que discordavam de sua definição de disciplina e viam quebra de hierarquia na sua relação direta com as praças. O discurso foi um dos fatores que impediram uma reação efetiva de militares legalistas ao golpe de Estado. Com a queda do presidente, o evento representou assim um dos momentos finais da República Populista e da carreira pública de Goulart. ComparecimentoO mês de março de 1964 foi ponto de inflexão para o Governo João Goulart, marcando o comprometimento do presidente com as esquerdas e o fortalecimento de sua oposição. A reação branda à Revolta dos Marinheiros desacreditou o governo entre a oficialidade militar, e as conspirações em curso estavam prestes a se materializar em um golpe de Estado.[1][2] No dia 28 a cúpula dos conspiradores em Minas Gerais reuniu-se para seus últimos preparativos,[3] enquanto o grupo do general Castelo Branco definiu no dia 29 que a derrubada do presidente seria em 2 de abril.[4] A comemoração dos 40 anos da Associação dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar estava marcada para o dia 30 no Automóvel Clube[5] e o presidente estava convidado. Embora uma solenidade como aquela fosse corriqueira e já estivesse marcada com bastante antecedência, as circunstâncias davam nova conotação ao evento: era um encontro com subalternos militares em meio à repercussão de um motim de subalternos,[6][7] conduzido por um governante que pretendia ter uma base de apoio entre os sargentos para reagir a uma possível investida dos oficiais.[8] Vários assessores advertiram Goulart contra o comparecimento, assim como militares legalistas, como o brigadeiro Francisco Teixeira.[9] O secretário de Imprensa do presidente, Raul Ryff,[10] e os deputados Tancredo Neves, Doutel de Andrade e Tenório Cavalcanti foram contra.[6] Para Tancredo, o presidente deveria enviar um representante, mas sua presença pessoal seria uma provocação política; comparecer, “somente se o presidente estivesse às vésperas de uma luta armada e dali saíssem tropas para o combate.”[6] Naquelas circunstâncias, o comparecimento seria aos olhos do oficialato a continuidade da quebra da disciplina e hierarquia.[9] Entretanto, Goulart sentia-se respaldado pelo dispositivo militar do general Assis Brasil,[6] não queria demonstrar fraqueza[11] e “acreditava que, comparecendo ou não, sua atitude não mudaria o curso dos acontecimentos.”[12] O presidente chegou antes das 20:00, com a presença da esposa Maria Thereza e os ministros Assis Brasil, do Gabinete Militar, Abelardo Jurema, da Justiça, Wilson Fadul, da Saúde, Amaury Silva, do Trabalho, Expedito Machado, da Viação e Obras Públicas, Anísio Botelho, da Aeronáutica, e Paulo Mário da Cunha Rodrigues, da Marinha.[13] De 26 mil sargentos no Rio de Janeiro, os organizadores esperavam 10 mil, mas só compareceram ao redor de dois mil.[13] Abelardo Jurema nota que os dois mil presentes não eram dois mil militares, pois suas famílias e civis também estavam no salão.[14] Dos presentes, é provável que predominassem integrantes da Polícia Militar. A presença do Exército era mínima, pois os comandantes não liberaram a saída dos quartéis. Não houve incidentes disciplinares contra essa medida.[15] A presença dos policiais militares era relevante pelo fato de sua corporação ser o braço armado do governador oposicionista Carlos Lacerda.[16] Compareceram também marinheiros, cabos e fuzileiros navais,[13] e duas figuras da crise na Marinha, José Anselmo dos Santos, o “cabo Anselmo”, e Cândido Aragão, comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, estavam presentes com grande destaque.[17] Entre os presentes havia integrantes do Comando Geral dos Trabalhadores, Pacto de Unidade e Ação, Ação Popular e Política Operária e brizolistas, comunistas e nacionalistas.[18] DiscursosAlém do presidente, discursaram vários outros oradores,[14] entre eles Abelardo Jurema e José Anselmo dos Santos. O sargento e deputado Antônio Garcia Filho falou em “rejeitar as cúpulas alienadas e reacionárias”, enquanto o subtenente Antônio Sena Pires definiu: “Lutamos contra a exploração alienígena e concorremos para a politização do povo brasileiro, que não tolera mais o capital estrangeiro colonizador ou os trustes estrangeiros e os nacionais.”[19] Outros sargentos discursaram em defesa de mudanças na Constituição, reformas sociais e mudanças nos regulamentos militares, além de declarar seu apoio ao presidente e a unidade dos setores pró-reformas.[20] O discurso de Goulart começou após as 22:00 e às 23:35 ele já estava de volta ao Palácio Laranjeiras.[21] Suas palavras foram divulgadas por rádio e televisão, com a transmissão televisiva restrita ao Rio de Janeiro. Ele discursou “tenso, com olheiras”, com “uma fisionomia preocupada, cansada, constrangida”, falando com indecisão, sem “a precisão e o tom sedutor bastante conhecidos.”[22][16] Levou um texto mais moderado, escrito “a várias mãos, entre as quais as de Raul Ryff e Jorge Serpa”, ou ainda, escrito em grande parte por Luís Carlos Prestes, mas falou de improviso.[23][24][21] A possibilidade de um golpe de Estado foi explicitada,[5] e Goulart partiu para a ofensiva.[25] O primeiro termo utilizado foi “crise”,[24] que atribuiu aos setores da elite e investidores estrangeiros contrariados pelas suas propostas. Denunciou a ação do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que havia financiado políticos conservadores, rebateu as críticas de que fosse contra a família e a Igreja Católica[9][26] e atacou os “sabotadores” e “reacionários”. Falou sobre suas reformas de base, mas os tópicos mais importantes foram sua relação com os sargentos e a hierarquia e disciplina militares.[24] Ao mesmo tempo que justificava sua resposta à Revolta dos Marinheiros, declarou-se defensor da coesão das Forças Armadas,[21] respondendo a críticas como as enunciadas por Castelo Branco. Chamou os golpistas de verdadeiros violadores da disciplina e hierarquia,[27] relembrando que alguns deles, em 1961, haviam prendido sargentos e oficiais (como o marechal Henrique Teixeira Lott) defensores da legalidade.[a][28] Definiu a disciplina como sendo fundamentada no respeito recíproco[9] e, insistindo que os sargentos obedecessem à hierarquia legal, aludiu a uma ligação com ele, e não com os oficiais, no caso deles praticarem “sectarismo” ou se oporem aos “sentimentos do povo brasileiro”.[24] Garantiu que, apesar da oposição, as reformas de base seriam conseguidas,[16] e “Ninguém mais se pode iludir com um golpe contra o governo, contra o povo”. Concluiu:[24]
O presidente “nem parecia o Jango conciliador tão combatido pelas esquerdas”.[16] Boa parte dos autores consideram o discurso como uma radicalização e mesmo como um suicídio político,[29] como Thomas Skidmore, para o qual o tom foi de uma “beligerante oração de despedida” no qual “recusou-se a fugir à responsabilidade dos ataques à disciplina militar”,[30] e Marco Antonio Villa, cuja avaliação é de que se tratava de um testamento para dar base a um futuro retorno à política.[24] Uma interpretação alternativa é de que o objetivo do discurso seria, ao contrário, preservar o mandato do presidente através do apoio dos sargentos.[29] ReaçõesO Ultima Hora chegou às bancas no dia seguinte com avaliações otimistas, embora seu fundador Samuel Wainer tenha escrito nas suas memórias que foi contrário ao comparecimento do presidente.[16] Já Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista, avaliou dezoito anos depois que o evento foi “uma inversão de toda a hierarquia e facilitou o golpe”.[24] O senador Ernâni do Amaral Peixoto, após ouvir o discurso, julgou que “O Jango não é mais presidente da República”.[21] Oficiais legalistas e nacionalistas percebiam a gravidade da situação e estavam contrariados. O ministro da Aeronáutica, que estava na reunião, depois ordenou a prisão de um dos sargentos por seu discurso. O tenente-coronel Alfredo Arraes de Alencar, que servia na Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, viu como certa a ocorrência de um golpe de Estado.[31] Na memória militar, o evento é lembrado como um dos eventos motivadores da adesão da maioria neutra da oficialidade ao golpe. A reunião aparece junto com a Revolta dos Sargentos de 1963 e, em 1964, a Revolta dos Marinheiros e o Comício da Central.[32] Somada a esses eventos, a impressão dos oficiais, incluindo os legalistas, era que o próprio presidente incentivava a indisciplina militar.[33] Sua definição de disciplina — produto do respeito recíproco — não era a existente nas Forças Armadas, nas quais sua base é a obediência.[9] O conceito de disciplina dos oficiais não incluía, como pretendia Goulart, a participação política de seus comandados.[25] Os conceitos hierárquicos também foram feridos, pois o presidente dirigiu-se diretamente às baixas patentes para questionar o que faziam as altas.[34] Porém, como o desencadeamento da rebelião já estava em curso desde o dia 28, o golpe teria ocorrido mesmo se o teor do discurso fosse outro.[35] Os conspiradores, por sua vez, gostaram do discurso por empurrar os demais oficiais contra o presidente, como era a opinião de Ernesto Geisel, que o assistiu junto com Golbery do Couto e Silva e Castelo Branco.[24] Eles estavam apenas à espera de um pretexto para derrubar o presidente.[29] Às 05:00 do dia 31, em Juiz de Fora, o general Olímpio Mourão Filho deflagrou a ofensiva com uma série de telefonemas.[21] Pouco após o golpe, ele definiu a reunião no Automóvel Clube como o estopim para sua decisão,[36] entendimento também presente entre os historiadores.[b] Já nas suas memórias, narrou ter percebido depois do jantar que teria de dar a partida na madrugada do dia seguinte. Depois disso, assistiu o discurso na televisão por insistência de sua esposa.[37] Sua decisão consistiu no acionamento de amplos preparativos e não num gesto passional.[38] O apoio dos sargentos não se materializou durante o golpe, e sua obediência hierárquica no Exército se manteve, ocorrendo o rápido colapso da situação militar do governo.[12] A reunião já foi chamada de “último ato do Governo João Goulart e da V República”,[36][c] assim como a última aparição pública de Jango,[39] embora suas palavras no aeroporto de Brasília, na noite de 1 de abril, sejam também citadas como suas últimas em público.[24] Notas
ReferênciasCitações
Fontes
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